Eu sei que a gente se
acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar
em apartamentos de fundos e a não ter outra vista
Que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo
se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora,
logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as
cortinas logo se acostuma a acender cedo à luz.
E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a
acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo
porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus
porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não
dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a pagar
por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
Para ter com que pagar nas
filas em que se cobra.
A gente se acostuma à
poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando
não perceber,
Vai afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada,
a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a
gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a
gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há
muito o que fazer,
A gente vai dormir cedo e
ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não
se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar
feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para
poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e
que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.
Nota: Este texto de Marina
Colasanti (que foi grande amiga de Clarice) foi publicado em seu livro de mesmo
nome (Eu sei, mas não devia - Ed. Rocco - Rio de Janeiro - 1996). Com este livro Marina
conquistou um prêmio Jabuti.
Marina Colasanti
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