Ele tomou um banho de tecnologia e ganhou superpoderes. Ficou ágil, coletivo e revolucionário. Sua velha versão ainda resiste – mas por quanto tempo?
Todos os meses cerca de 20 pessoas comparecem a um encontro marcado em um prédio na região de Pinheiros, em São Pauio. É um grupo heterogêneo. Ali tem advogado, empresário, executivo, consultor. Eles se reúnem porque possuem algo em comum – sabem que o futuro de todos ali está ameaçado. Pra que você entenda o que está acontecendo, vamos às explicações. O prédio de Pinheiros é a sede da Câmara Brasileira do Livro. O pessoal que se reúne lá é formado, na maioria, por representantes de editoras e distribuidoras de livros. E o que os preocupa é um concorrente que vem desafiando o reinado do livro impresso, mantido há 6 séculos, desde a Bíblia de Gutenberg: o livro digital. “A tecnologia está avançando rapidamente. E nós, produtores de livros, ainda estamos presos ao papel”. diz Henrique Farinha, coordenador do grupo e diretor da Editora Gente.
O comandante desse ataque à literatura de papel tem um nome: Kindle. É o leitor eletrônico de livros lançado pela loja virtual americana Amazon. uma tela digital capaz de reproduzir as páginas de qualquer livro, ainda que com algumas limitações. Tem enormes vantagens na disputa com o papel. Digamos que você está lendo esta SUPER enquanto descansa numa paradisíaca praia do Nordeste. Você se interessou pela entrevista com Dan Ariely, na página 34, e resolveu comprar o livro Previsivelmente Irracional de autoria dele. Basta tirar o Kindle da mochila, navegar com ele pelo site da Amazon e fazer a compra na hora. Em coisa de um minuto, você terá o livro inteiro disponível no aparelho. Não é feitiçaria. é tecnologia – uma função wireless parecida com a de alguns celulares. O pagamento seria feito com o cartão de crédito. O preço: USS 9.99. uns RS 19 reais. Bem mais barato que o livro impresso. que custaria o equivalente a RS 31 na mesma loja. Sem contar que daria para ler ali, com o pé pra cima, qualquer outro livro que você já tivesse comprado pelo Kindle. O bichinho armazena mais de 1 500 obras. É o mesmo que carregar por aí uma biblioteca formada durante toda a vida.
A praticidade é a sacada revolucionária que fez do Kindle um hit entre os americanos, por enquanto os únicos a aproveitar suas funcionalidades (a rede wireless usada para venda dos livros ainda não funciona em outros países). Segundo a Amazon. um livro que tenha uma versão digital para o Kindle vende 35% mais cópias. De cada 4 exemplares vendidos de uma obra. um já é digital. Tem até gente pedindo autógrafo pra escritor no e-reader. (Aconteceu de verdade em Nova York, com o humorista David Sedaris. no lançamento de seu livro Engolido pelas Labaredas, no ano passado.) E olha que o Kindle ainda vive a sua infância. A tela já mostra texto e imagens, mas em branco e preto. Cores? Só daqui a alguns anos, segundo JeffBezos, o presidente da Amazon.
Conclusão 1: para os nossos amigos lá na Câmara Brasileira do Livro: o livro digital já pegou. Conclusão 2: se ficar ainda melhor, vai nocautear o livro impresso. Para piorar, uma legião de soldados vem na retaguarda do Kindle. tão ansiosa para vencer a batalha quanto seu líder. Os outros e-readers no mercado estão se sofisticando. Caso do Reader Digital Book. da Sony. Lançado em 2006, ele acabou de ganhar uma turbinada. Em março, a Sony disponibilizou para os donos de seu e-reader mais de 1 milhão de livros clássicos – de graça. Comor Uma parceria com o Google, que vem digitalizando obras por meio de acordos com editoras. Aliás, são textos que estão dispo níveis para a leitura também na internet. Basta entrar no Google Books – há outros 6 milhões de livros lá.
Sem contar que dá para ler um livro até pelo celular. Por enquanto, a coisa funciona graças ao Kindle – você baixa um aplicativo da Amazon pelo iPhone e manda ver na leitura. Mas já tem gente apostando que a Apple vem aí com uma idéia jobsiana para transformar o iPhone em um e-reader sofisticado. No Brasil, nada disso vale ainda. O primeiro a chegar deve ser criação tupiniquim mesmo: o Braview.
E eu com isso?
Beleza, o livro digital é mais prático e barato do que o impresso. E daír Daí que a transição vai mexer diretamente com a sua vida. Veja este caso: na cidade inglesa de Hacknev, a escola City Academy vai adotar e-books em formato PDF para ensinar seus alunos, uma criançada de 11 a 16 anos. Nada mais de livros convencionais. Para viabilizar a digitalização, a escola está trabalhando com editoras de livros que compõem o currículo escolar. Chega de ver criancinhas com mochilas de 3, 4, 5 quilos nas costas. No caso do Kindle, tudo caberia em menos de 300 gramas. O mesmo que você teria de carregar se saísse de férias e levasse 5 livros pra ler na viagem.
A dor na coluna vai diminuir. Mas a dor no bolso pode aumentar. É verdade, os e-books custam menos do que o livro impresso. O problema é que um modelo como o Kindle permite que você tenha um livro no momento em que quiser – nem sobra tempo para pensar duas vezes. É a oportunidade perfeita para as compras por impulso. E quem é mão de vaca não vai ter moleza pra pegar livro dos outros. Hoje, não dá para emprestar as obras digitais para os parentes ou amigos. A exceção é o Cool-er. da fabricante britânica ínteread. que deixa você repassar um arquivo para até 4 pessoas.
O livro digital também pode transformar a leitura em um ato coletivo. Não. não é que você vai reunir a galera pra contar historinha. É só a influência da web 2.0. Sabe aquelas anotações que a gente faz no canto da página? Com o livro em bibliotecas como a do Google, vai dar para ler seu conteúdo e deixar anotações para o próximo leitor. Teríamos acesso aos pensamentos e referências que outra pessoa, que nem conhecemos, deixou ali.
Bacana, não é? Mas as mudanças podem não ser tão positivas para o pessoal da indústria do livro, como aquele grupo do começo da reportagem. Pense aqui com a gente: se não vamos precisar de papel, tinta e distribuição pra fazer e vender livros…pra que servirão as editoras e distribuidoras? Aí é que o bicho pega. Autores best sellers não precisam de tanta orientação ou promoção pra vender livros. Poderiam cortar os intermediários e negociar direto com as lojas. Isso aumentaria a participação nos lucros. O movimento já começou: a Interead, aquela do Cool-er, ofereceu 50% do dinheiro das vendas para os escritores que coloquem seus livros à venda no site do e-reader, o Coolerbooks.com. Uma editora tradicional costuma pagar até 10%. Mas e os autores menos famosos? Eles ainda precisam das editoras. E a morte delas pode ser a morte de grande parte da boa literatura. Ou não: talvez qualquer um possa escrever um livro e colocar na internet. São questões ainda sem resposta.
De qualquer jeito, o modelo tradicional não vai desaparecer da noite para o dia – as vendas de livros eletrônicos não passam de 2″ o do mercado livreiro, e isso nos países em que o e-reader já é realidade. Mesmo assim, editoras e lojas estão se mexendo, seja digitalizando o catálogo, seja criando negócios no mundo virtual. Elas têm, no entanto, uma dor de cabeça maior pela frente. No empenho para consolidar seu leitor eletrônico, a Amazon cravou um preço para a venda da maioria de seus livros.- USS 9.99 – enquanto um título em capa dura custa em média entre US$ 25 e USS 35. Só que a própria Amazon paga entre USS 12 e USS 13 pra comprar obras das editoras. Ou seja, tem prejuízo. É uma aposta para o futuro: o preço baixo ajuda a atrair clientes a rodo. isso pode pressionar as editoras a baixar os preços para competir, sacrificando os lucros. E talvez as levando à falência. Só a Amazon se daria bem. porque teria a clientela formada e conseguiria colocar o negócio no azul.
Até as bibliotecas terão de aprender a viver nessa nova ordem. No exterior, os bibliotecários estão se especializando em pesquisas online. Querem ser profissionais preparados para ajudar estudantes e interessados a filtrar informações encontradas em sites. “Tem muito lixo na internet. As pessoas assumem como verdade qualquer informação achada na Wikipedia”, diz Nêmora Rodrigues, presidente do Conselho Federal de Biblioteconomia. “O bibliotecário precisará indicar o caminho para as fontes mais relevantes e fidedignas.”
Pois é, o livro eletrônico chegou botando banca. Mas o fato é que ele ainda não chegou de verdade. Há muito a ser aprimorado até que os aparelhos e bibliotecas online caiam nos braços do povo. “O livro impresso terá seu espaço até aparecer um leitor eletrônico que seja acessível, agradável de usar e tenha um formato atraente. A questão é quando vai surgir”. diz Henrique Farinha. De qualquer forma, o ringue está pronto. E o livro impresso, com suas capas coloridas, o cheiro de tinta e uma experiência de tato ainda inigualável, terá de barrar o ímpeto de seu oponente – mais jovem e cheio de novidades. Antes que o novato vire um produto a que nem o leitor mais conservador consiga resistir.
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