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domingo, 17 de fevereiro de 2013

UMA CRIATURA

Sei de uma criatura antiga e formidável,
que a si mesma devora os membros e as estranhas,
com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales à maneira de abismo,
espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
parece uma expansão do amor e de egoismo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
gosta do colibri como gosta do verme,
e cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela, o chacal é como a rola inerme,
e caminha na terra imperturbável como,
pelo vasto areal, um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo,
vem a folha quem lento e lento, se desdobra,
depois a flor, depois o suspirar do pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra,
cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto.
E é nesse destruir que as suas forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto:
começa e recomeça uma perpétua lida,
e sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte: eu direi que é a Vida.

Machado de Assis

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