Especial Ecologia Super Interessante
No mundo existem dois grandes tipos de
fenômenos: os concretos e os abstratos. Entende-se por concreto tudo aquilo que
tem massa e volume, e que ocupa lugar no espaço. Portanto é tudo o que pode ser
pesado e medido, e que pode ser percebido pelos órgãos dos sentidos. Pode,
portanto, ser visto, tocado, cheirado, etc.
Fenômenos abstratos são igualmente reais,
porém não podem ser vistos nem tocados. Sua percepção não depende dos sentidos,
mas do intelecto ou das emoções. Olhe para seu pulso. Você tem um relógio? Ele
é concreto. Mas o que ele faz? Ajuda você a perceber um fenômeno totalmente
abstrato, e de uma importância cada vez maior em nossa vida: o tempo.
Provavelmente a maior dificuldade que temos,
ao nos relacionarmos com o planeta Terra, é uma monumental diferença de idade.
O famoso conflito de gerações, levado ao extremo. O mundo é velho demais, e
nós, de qualquer geração, jovens demais para entende-lo. Nossa vida é medida em
anos ou, no máximo, em décadas. O descobrimento do Brasil tem cinco séculos. O
cristianismo dois mil anos. Os pensadores gregos um pouco mais que isso. E toda
a história conhecida não passa de 5.000 anos, graças ao surgimento da escrita,
no caso, a simbologia cuneiforme inventada pelos sumérios, lá na velha (velha?)
Mesopotâmia.
E o que tudo isso representa para a Terra,
se considerarmos sua idade? Absolutamente nada. Somos meros adolescentes em
festinha de final de semana. As principais evidências, através da
estratificação geológica e da marcação radioativa são de que nosso planeta
tenha alguma coisa perto de 4,6 bilhões de anos. Nossa galáxia, a Via Láctea
teria surgido da Grande Explosão, o famoso Big Bang, há 15 bilhões de anos, e
os protoplanetas do sistema solar começaram a se formar há 5 bilhões de anos,
através da condensação do material da monumental nebulosa formada em torno do sol.
A atração gravitacional das partículas que
formaram a Terra acabou por criar uma massa extremamente quente. Quando acabou
o estoque de pó estelar, o planeta parou de crescer e começou a esfriar. Já
esfriou o suficiente para permitir a vida, mas só na superfície, a chamada
crosta, que tem no máximo 50 km de espessura. Abaixo dela está o manto, que
ainda é rocha quente, comprimida, e que tem mais de 3.000 km de espessura,
antes do núcleo, que tem também os seus 3.000 km. O interior do manto pode
atingir temperaturas superiores a 4.000 graus centígrados. De todas as
aventuras imaginadas por Júlio Verne, como a chegada do homem à lua e ao fundo
do mar, entre outras, a única que seria impossível, é justamente a viagem ao
centro da terra.
Vivemos, portanto, em uma casquinha de maçã,
a crosta terrestre, que começou a resfriar há cerca de 3 bilhões de anos, o que
permitiu a formação dos primeiros mares primitivos, que rapidamente se
transformaram em uma sopa de material orgânico, capaz de originar as primeiras formas
de vida, provavelmente procariontes, como bactérias e algas azuis.
A seqüência de acontecimentos a partir de
então, formam a maravilhosa trama da evolução, que ainda intriga cientistas do
mundo inteiro. Como uma espécie evolui é entendida com segurança, através do
que foi explicado por Darwin, a seleção natural, que privilegia os mais
adaptados, em detrimento daqueles considerados inaptos às variações do meio
ambiente. Mas e o salto de uma espécie para formar outra? Quem explica? Que bom
que ainda temos tanto para pesquisar, aprender e explicar. Cientistas têm
emprego para sempre!
A maior parte da história natural foi
dominada por seres inferiores, os invertebrados. Animais com coluna vertebral
começaram a aparecer apenas no período Siluriano, há cerca de 400 milhões de
anos, através dos primeiros peixes. No Carbonífero, há 300 milhões de anos, os
anfíbios iniciaram sua aventura terrestre. Deles vieram os répteis. Há cerca de
150 milhões, no Jurássico, viveram os famosos dinossauros que, para os padrões
do tempo do planeta, não ficaram por aqui muito tempo.
Os primatas começaram a aparecer a 50
milhões de anos, e o primeiro hominídeo há 5 milhões. O Australopitecus tem
cerca de 2 milhões, o Homo erectus um milhão, o homem de Neandertal 250.000, e finalmente
o Homo sapiens sapiens, nossa espécie, não mais que 40.000 anos.
Imagine agora que a idade da Terra seja de
apenas um ano, e nós estamos exatamente à meia noite do dia 31 de dezembro, em
pleno reveillon, passando para o ano dois. Se a vida tivesse começado no dia
primeiro de janeiro, os vertebrados teriam surgido apenas no dia 15 de
novembro, os dinossauros teriam vivido apenas durante a segunda semana de
dezembro e os primeiros primatas surgiriam no dia 26 de dezembro.
O Australopitecus apareceria no dia 31 de
dezembro, às 20:30h, e o nós homens atuais teríamos iniciado nossas andanças
pelo planeta quando faltasse apenas cinco minutos para a meia noite. Acabamos
de chegar… Usando a mesma analogia, tomando-se como base um dia, e não um ano, nós
surgiríamos no ultimo segundo (exatos 0,864 segundos). Incrível, não?
Nossa idade na Terra, comparada com a
verdadeira História Natural chega a ser humilhante, tão recentes somos. No
entanto isso nos leva a outra reflexão. Como então, se somos tão insignificantes,
conseguimos dominar as outras espécies, e reinar absolutos sobre o planeta,
ditando as leis de vida e de morte sobre a biosfera? A explicação é um capricho
da Natureza: nossa incrível capacidade cerebral. Enquanto o Australopitecus
tinha um crânio de cerca de 700 cm3, o Homo erectus de 1.000 cm3, o nosso pode
chegar a um volume cefálico de 2.000 cm3. Maior continente permitiu maior, e
mais sofisticado conteúdo. Um cérebro pensante, capaz de compreender os
mistérios da Natureza, de criar comunicação sofisticada, de escrever música e
poesia, e de inventar e reinventar tecnologia.
O cérebro humano é, sem dúvida, o maior dos
privilégios da Natureza. Foi com ele que inventamos a escrita e registramos a
história. Escrevemos romances, interpretando a comédia humana. Rabiscamos
poemas, dando voz ao espírito. Interpretamos as mensagens da Natureza, e
criamos as ciências. Rescrevemos as leis naturais, e as transformamos em
tecnologia. Construímos conforto, velocidade, transmissão da imagem e do som à
distância, desprezando totalmente o tempo. A inteligência nos diferencia dos
animais e, de acordo a megalomania que faz parte dela, nos aproxima dos deuses.
Somos deuses quando viajamos à velocidade do
som, quando vamos ao espaço, quando visitamos o fundo do mar, quando
manipulamos as entranhas do próprio homem através de lentes. Somos deuses
quando mapeamos o código que nos escreve, quando reprisamos um mamífero através
de uma célula isolada de um outro. Quando fazemos cirurgias, trocamos órgãos,
combatemos microorganismos, prolongamos a vida.
Perfeito. Mas que tipos de deuses
somos, quando inventamos a fissão nuclear e criamos a bomba atômica? E quando
derrubamos florestas para dar lugar a pastagens em lugares onde pasto não
cresce? Quando destruímos, conscientemente, a camada de ozônio que protege a
Terra das radiações perniciosas, e quando alteramos, em anos, cadeias
alimentares criadas a milênios, sem um pingo de remorso?
Estamos diante do grande paradoxo do cérebro
humano. Maravilha das maravilhas. Mas com defeitos de fabricação. Por exemplo,
não lida bem com o tempo. Considera-se eterno. Não percebe a conseqüência de
seus atos predatórios para as gerações que estão vindo e continuarão a vir.
Vivemos porque nosso corpo vive. E ele é
constituido por mais de 70 por cento de água. Assim como a água-viva, que ás
vezes nos queima na praia, e que tem 98% de água e só 2% de matéria orgânica,
sendo portanto uma água, viva, nós somos profundamente dependentes da água do
planeta. E da água doce, que corresponde a apenas 2,5% do total da água da
Terra. E desse volume, a maior parte está retida no gelo da Antártida, na
calota polar norte, na Groenlândia e nas geleiras das montanhas.
É quase inacreditável, mas apenas 0,01% da
água do planeta está disponível para uso humano, em forma de rios, lagos, e
também nas precipitações pluviais. Ainda é bastante água, porém três questões
importantes devem ser consideradas. Primeiro sua disposição, que é extremamente
irregular no planeta – cerca de 1,5 bilhão de pessoas não têm acesso regular à
água , segundo, a redistribuição das chuvas, provocada pelos desmatamentos e
outras agressões do homem, e terceiro, e patético, a desproporção entre a capacidade
poluidora e o controle da poluição exercida pelas autoridades responsáveis e
pela consciência da população.
E a Natureza teima em se impor. Nas margens
do rio Tietê, uma espécie de monumento à imbecilidade humana, vivem
maravilhosas garças brancas, que sobrevoam o lixo e a espuma sobrenadantes,
como testemunhas de acusação de uma crime de lesa lógica, sem perdão, sem
absolvição, sem apelação.
“Se não possuímos o frescor do ar e o brilho
da água, como é possível vende-los? Essa idéia me parece estranha”, disse o
chefe Seattle quando, em 1854, o presidente americano fez uma proposta de
compra de seu território. “Somos parte da terra e ela é parte de nós. Os picos
rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro e o homem –
todos pertencem à mesma família”, continuou, demonstrando um conhecimento
antecipado dos ciclos da matéria. “Tudo o que acontecer à terra acontecerá aos
filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos. Isso
sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra…”.
A carta do velho índio transformou-se no
mais pungente documento de consciência ecológica jamais escrito. Impressiona
pela lucidez, especialmente por ter sido escrito em meados do século 19, quando
a palavra ecologia nem havia sido inventada. “… o homem e a terra são da mesma
matéria…” Acerto científico. Nosso corpo é 23 por cento carbono. Donde ele vem?
Do ar, de onde é capturado pelos vegetais, que o repassam para nós, que o
devolvemos pela respiração. Um átomo de carbono de uma célula de meu cérebro
pode ter pertencido, há milhões de anos, ao epitélio da cauda de um dinossauro.
É o mesmo, que não se perde, não se cria, só se recicla.
Os elementos químicos, os compostos, como a
água, e até a energia necessária para que a vida se processe, pertencem a
ciclos. Se o ciclo for interrompido em algum lugar, inviabiliza a continuidade
do ciclo e a própria vida. O Nitrogênio, principal componente do ar que
respiramos, só chega até nós porque bactérias do solo são capazes de captura-lo,
e depois entrega-lo aos alguns vegetais – principalmente as leguminosas, como o
feijão e a soja – que com ele sintetizam proteínas, que nós comemos. Ou comemos
a carne de algum animal que as comeu. Quando queimamos o solo, matamos as
bactérias que absorvem o Nitrogênio, interrompendo o ciclo. E aí vamos ter que
fazer correções…
A transferência da energia é ainda mais
fascinante. Qualquer plantinha, da alga microscópica do mar, ao imponente
pinheiro dos planaltos do sul, todos os vegetais são capazes de uma mágica.
Reagem duas substâncias abundantes, a água e o dióxido de carbono. O Carbono
separa-se do Oxigênio e liga-se à água, dando origem a uma molécula orgânica
chamada carbohidrato, e a uma molécula de oxigênio livre, que é devolvido para
a atmosfera, possibilitando nossa respiração. Resumidamente:
H2O + CO2 à CH2O + O2
Essa reação, que qualquer escolar conhece,
chama-se Fotossíntese. Foto, porque só pode acontecer na presença da luz,
especialmente a solar. Síntese, porque termina por sintetizar (produzir) algum
material orgânico, no caso, uma molécula de carbohidrato (CH2O – carbono mais
água). E é aí que reside a mágica – ou milagre. Nessa simples molécula o
vegetal tem a capacidade de armazenar a luz, que veio do sol, em forma de energia
química. Quando nós comemos a planta, ou comemos a carne do animal que a comeu,
estamos recebendo essa molécula energética. Fazemos, então, a reação contrária.
Reagimos o carbohidrato com o oxigênio (por isso respiramos), reconstituindo a
água, que sairá pela urina, e o gás carbônico, que sairá pela respiração e
liberando, finalmente, aquele energia armazenada.
Em síntese, se nós vivemos, estamos gastando
energia. Qualquer ato fisiológico em meu corpo depende de energia. Se eu estou
escrevendo, pensando, batendo o coração, estou gastando energia. Se você está
lendo, respirando, mantendo a temperatura do corpo em 36 graus Centígrados,
está consumindo energia. E de onde vem essa energia toda? Só de um lugar: do
sol! Através do, ao mesmo tempo, complexo e simples, binômio
fotossintese-respiração celular. Para algumas pessoas, é mais fácil ver Deus
nessas reações da Natureza, do que nas grandes catedrais da alta Idade Média,
erigidas para dar ao homem um sentimento de inferioridade, e torna-lo
manipulável pelo clero e pela nobreza.
Inferiores somos, sim, perante o poder da
Natureza, que teima em se auto-administrar, em detrimento da ação predatória do
homem. Cada vez mais, a verdadeira força está se mostrando. A Sociologia, a
Antropologia, a Economia, a Psicologia, aprendem com a Biologia. A História
Natural é o que há de mais natural na história do ser humano.
Quando lemos os grandes clássicos, ou a
filosofia dos gregos, ou os livros religiosos, ou os tratados de psicologia, ou
a poesia contemporânea, encontramos, como pano de fundo, sempre o mesmo dilema:
a busca da felicidade pelo homem, e a sua total incompetência para encontra-la.
Hoje temos o auxilio da ciência, para nos ajudar a entender melhor a natureza
humana, suas ambições e suas ansiedades. Quem sabe, a simples observação do que
é natural, ou normal, ao nosso redor, não nos ajuda a nos compreendermos
melhor? A paciência dos ciclos naturais. O tempo certo para cada reação
química, para cada folha cair, para cada flor nascer, para cada broto surgir,
para cada árvore morrer.
Observe-se, você é parte viva da Natureza.
Texto publicado sob licença da revista
Superinteressante, Editora Abril.
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