Páginas

sábado, 28 de maio de 2011

“Um mundo num grão de areia”. (Texto do Livro)


Hoje é a celebração de um arquétipo: mãe. Mãe, antes de ser a minha mãe, aquela que me gerou e me deu à luz; é um vital colorido que existe na alma de todos. É uma linda imagem. Por isso mesmo eu fico triste nesse dia. Porque eu sou homem, não sou mãe, nunca gerei nem pari ninguém. Sou apenas pai. E o descubro num canto escuro, longe da luz do sol, e sem que ninguém lhe tenha acendido uma vela votiva.


Vão me consolar, dizendo que o Dia dos Pais chegará e o meu arquétipo estará, então, iluminado. Lorota. O Dia das Mães existiu sozinho por muito tempo. Ninguém falava nos pais. Era uma celebração só de protestantes, importada dos estados Unidos. As celebrações eram simples: quem tinha mãe usava uma flor vermelha na lapela; quem não tinha mãe colocava uma flor branca. Isso era tudo. O Dia dos Pais foi criado muito mais tarde, por dó, como prêmio de consolação e como possibilidade de maiores lucros para os comerciantes. O fato é que arquétipo de pai não tem importância.

Acho até que existe um fundamento biológico para a falta de importância do pai. Entre alguns bichos a única função do pai é a de fecundar. Executar a fecundação, o pai se torna desnecessário. Razão por que, entre certos invertebrados, ele se transforma imediatamente em refeição da fêmea engravidada: a futura mãe devora o parceiro sexual que, pós-coito, só serve para ser comido. Mas mesmo entre os mamíferos. Compare um touro com uma vaca. Uma tia solteirona minha, que acreditava firmemente em cegonha, ao saber do preço astronômico de um touro, perguntou indignada: “Afinal de contas, para que serve um touro?” ela estava certa. A existência da vaca se justifica por sua maternidade: ela pare bezerros e produz leite. Mas a função paterna do touro é efêmera: não dura mais que os minutos da cobertura.

Parece que a nossa cultura aceita com tranqüilidade a importância da mãe e a insignificância do pai. Lembro-me das procissões pachorrentas em que os devotos cantavam com voz anasalada esganiçada: “No céu, no céu, com minha mãe estarei...” E eu, menino, protestante, me perguntava: “E o pai, se não está no céu, onde estará? Os pais vão para o inferno? Se estão no céu, devem estar esquecidos nalgum canto escuro. Nas ninguém nota sua presença ou sua falta”. Em casa, quando a criança fazia qualquer coisa de errado, a mãe logo ameaçava: “Vou contar para o seu pai”. É, os pais são seres ameaçadores... antigamente os católicos não rezavam ao Deus Pai. Falar com Deus Pai era coisa perigosa. O Pai era um punidor implacável, tão implacável que condenou o seu próprio Filho a morrer na cruz para pagar uma divida que ele se recusava a perdoar. Mais seguro era rezar para a Mãe. Mãe é arquétipo de amor. Pai é arquétipo de punição. Vejo, colocados em carros, adesivos com a advertência: “Deus te vê”. Nunca vi adesivo dizendo: “Maria te vê”. O olhar da mãe é sempre sorridente. É o olhar do Pai que é terrível. E mesmo a psicanálise tem a sua parcela de culpa, ao eleger o mito de Édipo como arquétipo da relação pai-filho. O pai de Édipo é terrível. Planejou a morte do filho, perfurou seus pés e entregou-o a um pastor para desse cabo dele.

Já o arquétipo de mãe é um conjunto de perfeições, sacrifícios, abnegações, orações, noites maldormidas, lágrimas, seios que amamentaram. É tão perfeito que não pode ser verdadeiro. As estórias infantis são mais verdadeiras: as mães perfeitas já morreram, estão nos céus. Na terra estão as mães reais, que são descritas como madrastas cruéis. É o caso da mãe da Tita, no filme Como água para chocolate.

Eu preferia que, ao invés de dia das Mães, fosse o Dia da Maternidade. É que eu não concordo em que o arquétipo de mãe seja monopólio de mulheres que geram e dão à luz. Não concordo em que a imagem materna só seja aplicada aos rostos de mulher e corpos femininos. Muitos homens são movidos por um espírito maternal. O próprio Jesus Cristo pensava assim. Tanto assim que, ao ser informado que sua mãe e seus irmãos queriam falar-lhe, perguntou: “Quem são minha mãe e meus irmãos?” E, estendendo a mão para os discípulos, disse: “Eis minha mãe e meus irmãos.” Numa das mais lindas parábolas contadas por Jesus, a chamada parábola do filho pródigo, não existe a figura de uma mulher-mãe. Quem é maternal é o pai que nem castiga seus filhos nem os olha com olhos ferozes.

Mãe não é uma mulher que ficou grávida e deu à luz. Mãe é um supro misterioso que toca mulheres e homens e cria neles um jeito de dar colo, de espantar o medo, de cantar canções de ninar, de fazer dormir, de abraçar, de agradar, de não fazer cobranças nem pedir explicações, de repreender com severidade e ternura, de consolar em silêncio, de escutar, de respeitar, de conduzir sem empurrar ou puxar. Ninguém é mãe sempre. Uma pessoa é mãe quando é tomada pelo sopro da maternidade. Pode ser mulher. Pode ser homem. E que o nome desse dia não fosse Dia das Mães, mas Dia da Maternidade. Porque assim eu poderia ver meu próprio rosto no vitral colorido da catedral.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...