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domingo, 11 de março de 2012

Um dos críticos mais respeitados do país, José Castello diz que o Brasil tem hoje uma literatura muito forte, refuta a alcunha de especialista e se define como um “crítico sentimental”, que lê a partir da perspectiva do leitor comum. Desde 1999, quando lançou Inventário das sombras – livro com perfis de escritores que se equilibra entre a reportagem e o ensaio literário –, ele vem aprimorando um estilo de escrita que se encontra em zona cinzenta entre a ficção e aquilo que chamamos de “realidade” (com todas as aspas possíveis). Foi assim com Fantasma, livro que tem Paulo Leminski como personagem e que, em meio a fatos da vida do poeta, uma suspeita pouco provável – a de que Leminski não morreu – conduz a narrativa. 

Em seu mais recente romance, Ribamar, que lhe consumiu quatro anos de trabalho, Castello vai mais fundo na fusão de gêneros ao narrar uma suposta investigação acerca da infância de seu pai, o Ribamar do título. Em narrativa cheia de referências literárias, cuja principal é Carta ao pai, de Franz Kafka, Castello, ao investigar as raízes de Ribamar em sua cidade natal, Parnaíba, Piauí, revela, na verdade, as entranhas do personagem-narrador. Uma verdadeira sessão de psicanálise em forma de romance. 

Repórter de grandes jornais e revistas, há 20 anos Castello se dedica apenas aos livros. Desde então, o escritor atacou em várias frentes. Escreveu biografias (Vinicius de Moraes O poeta da paixão), livros de crítica (A literatura na poltrona), ensaios biográficos João Cabral de Melo Neto – O homem sem alma), crônicas (As melhores crônicas de José Castello) e, claro, romances. Crítico literário do caderno Prosa & Verso, do jornal O Globo, e colaborador de diversos veículos de mídia, Castello recebeu a reportagem da Revista da Cultura em seu apartamento, em Curitiba, para falar de sua trajetória como leitor e escritor. 

C. Em Ribamar, assim como em alguns de seus trabalhos anteriores, você pulveriza as fronteiras dos gêneros. Além de trabalhar com um texto aparentemente autobiográfico, o romance também pode ser lido como uma investigação jornalística e, ainda, como uma reunião de pequenas crônicas. Vários livros em um só. Como lhe surgiu a ideia? 

R. Tive a ideia lendo uma biografia da Virginia Woolf. No início, pensei em escrever sobre o escritor e sua relação com a família. Depois, mudei de ideia e resolvi que ia falar sobre a relação dos escritores com seus pais, homens. Só que, nesse ínterim, acontece o episódio do
exemplar de Carta ao pai, do Kafka, que eu dei ao meu pai em 1973 e, 30 anos depois, voltou para mim através de um amigo, que o comprou no sebo Berinjela, do Rio de Janeiro. Então, tive certeza de que deveria escrever sobre meu pai. Com isso, me ocorreu que eu deveria viajar a Parnaíba, cidade em que ele passou a infância e adolescência. Aí os pés do livro foram se multiplicando. Mas eu não pretendia reconstituir nada, não queria fazer uma biografia. Também não pretendia escrever uma carta para o meu pai, porque ele já estava morto havia 25 anos. E também não era um livro de memórias que estava na minha cabeça. Então, pensei: “Isso é ficção”.

C. E como você juntou as peças? 

R. Foi quando minha mãe, por acaso, um dia começou a cantar uma música e me disse que era a canção que meu pai cantava para eu dormir. Também por acaso, me ocorreu de anotar a letra e a música e mandar para o meu irmão, Marcos, que toca violão. Ele escreveu a partitura da música. E essa partitura deu um eixo para o romance. A partir daí, tive a ideia de que cada nota musical poderia corresponder aos temas diversos do livro (Kafka, viagem a Parnaíba, sonhos etc.) e que a própria partitura iria entrelaçar os temas. Com isso, não precisaria me preocupar com nenhum tipo de coerência. Então, foi como se eu escrevesse vários livros diferentes, que estavam sendo amarrados pela partitura da canção de ninar. Mas, antes de descobrir a partitura, eu já havia trabalhado durante três anos no livro, praticamente às cegas, sem saber onde ia chegar. 

C. É por conta disso que você tem proximidade grande com o leitor, diferentemente da crítica acadêmica, que sempre teve dificuldade de se relacionar com o público? 

R. Bem, não escrevo em linguagem técnica, o que já facilita. Também não trabalho com conceitos, mas com imagens e metáforas. Então, leio de outra posição, que é bastante banal. Eu leio da perspectiva do leitor comum. Mas, ao mesmo tempo, não sou um leitor comum,
porque tenho 60 anos e leio desde garoto. Tenho uma paixão pela literatura que, sei, grande parte das pessoas não tem. Então, é desse jeito que faço essa espécie de “crítica de periferia”, expressão que Antonio Candido utiliza em um ensaio do livro O albatroz e o chinês

C. Você já escreveu muito sobre Clarice Lispector e Franz Kafka. Assim como também sobre Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto. Na prosa e na poesia, esses são os escritores que mais o perturbam como leitor? 

R. A Clarice, certamente. É uma escritora que comecei a ler com 20 anos e até hoje me perturba. Sempre tenho a sensação de que estou lendo seus livros pela primeira vez. Isso é maravilhoso, é um elemento forte da genialidade dela. Minha relação com o Kafka entra com 
Carta ao pai e com A metamorfose, que acho um texto extremamente pessoal. O Kafka me interessa mais pelo modo, sutilíssimo, como ele se revela nos livros. Com o João Cabral e o Vinicius, tenho uma ligação forte, porque escrevi livros sobre eles. O poeta da paixão, que é uma biografia clássica, levei quatro anos escrevendo. Com o João Cabral vivi uma relação muito intensa, tive conversas muito íntimas, o que ele permitia a pouquíssimas pessoas, pois era um cara reservado. Mas comigo ele abriu o coração. No entanto, nesta lista, preciso incluir a literatura do João Gilberto Noll, com quem também tenho uma relação intensa. O Noll se doou inteiramente à literatura, que é quase uma religião para ele, uma religião laica. Ele escreve com uma força poética muito grande. Todas as coisas que procuramos disfarçar, o Noll eleva. Ele é um gênio. 

C. E quem são os escritores que você não leu, mas acha importante ler? 

R. Eu, por exemplo, nunca consegui ler Em busca do tempo perdido, do Proust [Marcel]. Já tentei e parei. É uma coisa que me faz falta, até porque tenho vários amigos que são fãs do Proust e me dizem que vou adorar. E tenho a intuição de que isso vai mesmo acontecer. Mas realmente não tive tempo. Também já li várias edições adaptadas, desde criança, de Dom Quixote, mas nunca o li na íntegra. É um sonho que tenho. Moby Dick mesmo só li agora, com essa edição mais recente da Cosac Naify. Doutor Fausto, do Thomas Mann, também é um livro que preciso ler. 

C. É comum ouvir, aqui e ali, que hoje não temos mais escritores tão bons, que nossa literatura está em baixa. Qual a sua visão da literatura brasileira hoje? Temos escritores chegando que possam manter o nível de décadas passadas? 

R. Claro que há a questão do distanciamento do tempo, que torna mais difícil a análise dos escritores contemporâneos. Mas tenho a  convicção de que o Brasil, hoje, tem uma literatura muito forte. E o que caracteriza essa literatura, mais do que nunca, é o pluralismo. Os escritores estão em vôo solo. Você não consegue mais traçar grupos, tendências. Isso é coisa do século 20; no século 21, não existe mais. Então, o Brasil – só para falar de prosa – tem Cristovão Tezza, Raimundo Carrero, Bernardo Carvalho, Raduan Nassar, João Gilberto Noll, Milton Hatoum, escritores que não têm nada a ver um com o outro. E isso mostra a riqueza da nossa literatura. 

C. Mas você acha que a crítica literária cobre bem a produção contemporânea?

R. O espaço é sempre precário para todo mundo, até mesmo para os escritores consagrados. Mas os escritores jovens sofrem mais. Se você tem um livro de um estreante e outro do Saramago, mas espaço apenas para um texto, você vai dar o Saramago, claro. Não estou dizendo que é o certo, mas todo mundo faz assim. 

C. Você foi um dos primeiros escritores a apostar no Rascunho. O jornal acaba de completar dez anos. Por que você resolveu emprestar sua credibilidade de autor e crítico a um projeto, à época, incerto e com grandes chances de naufragar? 

R. Apostar no Rascunho foi uma das melhores coisas que fiz na vida. Em 1994, quando cheguei a Curitiba, não conhecia ninguém do meio literário. Então, comecei a fazer – poucas – amizades. A principal delas, com o Cristovão Tezza. À primeira vista, o ambiente literário de
Curitiba me pareceu muito hostil, o provincianismo da cidade me assustou. Decidi que a melhor maneira de me situar no novo cenário era me alinhando com as pessoas mais novas. O Rascunho, no início, teve uma fase meio selvagem, em que publicou algumas barbaridades, mas que logo foi superada. Apesar de muita gente – escritores estabelecidos – aconselhar a me afastar do jornal, sempre acreditei que ali tinha vida inteligente. O Rascunho é editado com o mesmo espírito livre e pluralista com que editei o caderno ideias, do Jornal do Brasil. Então, tenho certeza de que acertei. 

C. No livro Inventário das sombras, publicado em 1999, você descreve sua relação com vários escritores por meio de um texto que se equilibra entre o ensaio e a reportagem. É nesse livro que você estabelece o tipo de texto que iria fazer na década seguinte?

R. Sim, o Inventário é meu divisor de águas. Antes dele, estava muito temeroso. Somente dez anos depois de começar a escrever meu primeiro livro, O poeta da paixão, em 1989, que comecei a quebrar essa armadura dos gêneros. E, agora, dez anos depois de Inventário, com o Ribamar, faço um segundo corte, em que desnudo de vez essa coisa dos gêneros. O romance pode ser bom, uma porcaria, seja lá o que for, mas nunca escrevi um livro que tivesse tanto a minha cara quanto Ribamar. E nunca escrevi um livro que represente tanto o que quero fazer a partir de agora. 

C. Desde 1994, você mora em Curitiba. É curioso que um carioca opte por uma cidade que, de certa forma, é a antítese do Rio de Janeiro. O que Curitiba pode oferecer a um escritor? 

R. Gosto muito da definição do Cristovão Tezza, que diz que a melhor maneira de ser feliz em Curitiba é viver em Curitiba fingindo que você não vive em Curitiba. E olha que amo a cidade também. Estou aqui há 17 anos e acho que a principal qualidade da cidade, que para muitos é um defeito, é sua introspecção. Sou um cara mais caseiro e o frio e a chuva fazem você pensar dez vezes antes de sair de casa. O que, para um escritor, é ótimo.

C. O Paiol Literário, bate-papo mensal que você e o Rogério Pereira, editor do Rascunho, criaram em Curitiba, sempre começa com duas perguntas aos escritores: qual é a função da literatura e por que ler? O que mais lhe chamou a atenção nas mais de 30 entrevistas que você fez enquanto comandava o evento [agora o posto está sob o comando do escritor Luís
Henrique Pellanda]? 

R. Olha, em várias entrevistas me controlei muito para não rebater opiniões, porque ouvi coisas que me pareciam falsas. Mas, na grande maioria das vezes, ouvi coisas que me emocionaram, coisas que eu queria ter dito e outro escritor disse antes de mim. Ideias das quais me apropriei depois. Essas entrevistas me enriqueceram muito, porque me obrigaram a ouvir – o que, para um escritor, é fundamental. Esse foi um dos presentes que o Rascunho e o Rogério Pereira me deram. Minha dívida com o Rogério é impagável.

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