Greves
podem contribuir para melhorar salários e condições de trabalho, podem até
derrubar governos, mas só uma contribuiu de forma insofismável para o
enriquecimento da cultura, nos últimos 50 anos. No inverno de 1962, os gráficos
de Nova York cruzaram os braços durante 114 dias, prejudicando todos os jornais
da cidade – e tirando de circulação os cadernos de livros do New York Times, do
New York Herald Tribune e da revista semanal The Saturday Review. Sem ter onde
divulgar seus caudalosos lançamentos de fim de ano, as editoras se prepararam
para um Natal literalmente no vermelho.
A book review dominical do Times foi a
ausência mais lastimada, notadamente pelos que nela publicavam resenhas e
artigos. Mas, para um círculo de intelectuais de maior envergadura, ligados a
revistas como Partisan Review, The Nation, Harper’s e The New Republic, e com
outro padrão de exigência, a greve dos gráficos caiu do céu. “Graças a ela,
confirmamos nossa desconfiança de que a book review do Timesnão faz a menor
falta”, tripudiou Edmund Wilson.
Três anos antes, a ensaísta e escritora
Elizabeth Hardwick, mulher do poeta Robert Lowell, atacara o declínio da
crítica americana e o filistinismo dos suplementos literários, num artigo
publicado na Harper’s, então editada por um jovem de 30 anos chamado Robert
Silvers. Nos primeiros dias da greve, num jantar para Lowell e Hardwick no
apartamento do casal Jason e Barbara Epstein (ele vice-presidente da Random
House, ela editora), em meio a lamúrias sobre o empobrecimento da crítica literária
e manifestações de alívio pela desobrigação de ler jornais todas as manhãs, o
poeta propôs a criação de uma publicação literária de alta qualidade,
beneficiando-se da publicidade das editoras estancada pela greve. O germe da
The New York Review of Books acabara de ser plantado.
Ensaios de fôlego
Quem poderia editá-la? A escolha natural,
Barbara Epstein, declinou, alegando a necessidade de um parceiro para dividir a
faina editorial e administrativa. Pensou-se em Norman Podhoretz. Prestes a
tornar-se editor-chefe da revista Commentary, ele preferiu não se arriscar.
Outra graça recebida. Dali a algum tempo, Podhoretz tiraria a máscara liberal e
se revelaria um dos intelectuais mais retrógrados e ressentidos de sua geração.
E um péssimo profeta. “Esse projeto não vai dar certo”, acrescentou ao seu
refugo.
Afinal coeditado por Barbara e Bob Silvers,
com Hardwick de conselheira editorial e Symour Chwast cuidando da paginação, o
número zero da revista ficou pronto em poucas semanas. Custo operacional: US$ 4
mil, emprestados pelo Marine Midland Trust e avalizados por Jason Epstein. Deu
para cobrir as despesas de papel e impressão; a redação não viu um centavo. Era
uma aventura cujo sucesso interessava a todos os envolvidos por Silvers &
cia. Rodado numa gráfica de Connecticut, impresso em papel jornal, com 47
páginas, o número inaugural chegou às bancas e livrarias em fevereiro de 1963.
Custava 25 centavos de dólar e vendeu pouco menos da metade (43 mil exemplares)
da tiragem inicial. Nada mau para uma publicação literária sem concessões e
lançada na surdina.
Simples, sóbria e elegante, não tinha capa.
Na primeira página, uma resenha de The Fire Next Time, de James Baldwin,
assinada por F.W. Dupee. Nas páginas seguintes, dividindo espaço com três
dezenas de anúncios (conforme Lowell previra, todas as editoras de livros
compareceram), o primeiro time das letras americanas: Dwight Macdonald, Phillip
Rahv (comentando Soljenitsyn), Mary McCarthy (elogiando Almoço Nu, de William
Burroughs), W.H. Auden, Norman Mailer, Irving Howe, Susan Sontag (refletindo
sobre os ensaios de Simone Weil), Gore Vidal, Alfred Kazin, William Styron,
William Phillips (analisando Elias Canetti), Jules Feiffer, mais Epstein,
Lowell, Hardwick e outros 30 craques do ramo.
Sucesso instantâneo. Mecenas fizeram fila
para injetar recursos na revista. Ausente da estreia, Edmund Wilson foi seu
primeiro grande entrevistado, no segundo número, publicado quatro meses depois.
Quando saiu o terceiro, em setembro, já havia dinheiro em caixa e um novo
escritório à disposição dos aventureiros. De lambujem, as geniais caricaturas
de David Levine, que só deixaria de ilustrar a revista ao perder a visão, em
2007.
Peguei a NYRB já no quarto número, em minha
primeira viagem a Nova York. Principal chamariz: O Grupo, de Mary McCarthy,
resenhado por Mailer. Nem sequer de nome conhecia a revista. Meu alpiste,
naquela época, eram a Esquire, a New Yorker e a Partisan Review. Viciei na
hora, corri atrás das três edições anteriores e virei assinante permanente, mas
não remido, infelizmente. Mas pago com gosto.
Seu prestígio estendeu-se até aqui, nos anos
1970, graças sobretudo a Paulo Francis, à turma do Pasquim e ao semanário
Opinião, que com frequência traduzia seus longos ensaios. Das imitações que
inspirou mundo afora, apenas uma, a London Review of Books, é consanguínea.
Contra os falcões
Em seus 50 anos de vida, a NYRB mudou o
panorama cultural da América e a imprensa que o observa e investiga. Até a book
review do Times teve de se reciclar para diminuir o abismo entre as duas
publicações, embora permaneçam dissemelhantes na periodicidade, na abrangência
temática, no espaço e na margem de liberdade concedidos aos colaboradores.
A NYRB, que só sai 20 vezes ao ano, é muito
mais que uma publicação literária de indisputável qualidade, é um fórum de
debates sobre livros, ideias, tendências e fatos da atualidade, de leitura
obrigatória. Além de resenhas e ensaios, investe em grandes reportagens e
coberturas internacionais com a assinatura de “repórteres” tão distintos quanto
Mary McCarthy (despachada para o Vietnã), Graham Greene (direto do Panamá do
general Torrijos), Susan Sontag (Sarajevo), Joan Didion (El Salvador) e V.S.
Naipaul (Argentina e Congo), Hardwick (Brasil, durante a ditadura militar). A
chama nunca se apagou. O escândalo de Abu Ghraib explodiu nas páginas da
revista, esmiuçado por Mark Danner, em outubro de 2004.
Inevitavelmente politizada, mas sem antolhos
ideológicos, a NYRB surgiu numa época tumultuosa, a nove meses do assassinato
de Kennedy, e depois encarou a guerra no Vietnã, a campanha pelos direitos
civis, Maio de 68, os Documentos do Pentágono (que antes de serem entregues ao
New York Times estiveram malocados numa gaveta de Silvers, amigo de confiança
de Daniel Ellsberg), Watergate, inúmeras guerras, revoluções e golpes de
estado, o degelo terminal do comunismo soviético o ataque às torres gêmeas, o
desgoverno Bush, a crise financeira de 2008, a eleição de Obama.
Às vezes mais à esquerda, notadamente quando
abrigou articulistas como Noam Chomsky, Alexander Cockburn, Andrew Kopkind e
Eric Hobsbawm, esteve quase sempre do lado certo. Seu período mais, digamos,
engajado foi na segunda metade dos anos 1960, auge das denúncias contra a
C.I.A., o conflito no Sudeste Asiático e os intelectuais chapa-branca.
Na edição de 24 de agosto de 1967, a
provocação suprema: na capa, o diagrama de um coquetel Molotov. Mais “radical
chic”, impossível. A concorrência, liderada pelos trombas da Commentary, quase
exigiu a intervenção da Anistia Internacional. “Ela é o inimigo”, proclamou
Midge Decter. Mas ninguém deu ouvidos à sra. Podhoretz. Nem seu marido, o
grão-rabino da intelligentsia kosher, tinha o poder de fogo de um Moshe Dayan.
Quando da invasão do Iraque, enquanto a New
Yorker e falcões enrustidos da imprensa mainstream davam um voto de confiança
ao intervencionismo bushista, Silvers montou às pressas um manifesto contra,
assinado por todos os escritores, poetas, acadêmicos, pensadores e jornalistas
que conseguiu alcançar por telefone. Tony Judt, por exemplo, foi acordado às 3
da madrugada, em Londres.
Bolsa de apostas
Conheci Silvers num almoço na casa de
Fernando Gasparian, publisher do Opinião. Alto, formal, bem-humorado e
bem-falante, com ligeiro (e postiço) sotaque britânico; raciocínio relâmpago,
curiosidade oceânica. Praticamente me repetiu de viva voz o editorial do
primeiro número da revista, a que só se refere como “paper” (jornal). Não
pretendia apenas preencher um buraco no mercado editorial nem cobrir todos os
livros lançados, mas valorizar a excelência e abrir um novo espaço para a
reflexão. Deu detalhes sobre seu modus operandi, como distribuía os livros a
serem resenhados, seduzia os colaboradores e, com a ajuda de Barbara Epstein,
submetia o material editorial ao mais rigoroso copidesque. Textos que não tivessem
clareza, elegância, consistência e escorregassem em jargão e clichês iam direto
para o lixo.
Até hoje é assim. Silvers, agora um vigoroso
senhor de 88 anos, perdeu suas parceiras originais (Barbara morreu em 2006 e
Hardwick, no ano seguinte) mas, de algum tempo amparado por perfeccionistas de
outra geração, não baixou seu nível de exigência. A empresa, comprada por Rea
Hederman em 1984, cresceu, passou a editar livros, mas nas decisões editoriais
ainda é Silvers quem apita. A joia da coroa, com uma tiragem estabilizada em
143 mil exemplares, já chegou ao mundo digital, com blogueiros à altura de suas
tradições analógicas: Robert Darnton, Anthony Grafton, Charles Simic e Tim
Parks, entre outros.
Quem irá suceder a Silvers? Cinco nomes já
surgiram na bolsa de apostas: Louis Menand (também assíduo colaborador da New
Yorker), Daniel Mendelsohn (muito ligado a Silvers), Mark Danner (que conhece
bem a engrenagem da revista), Michael Shea (que já foi sênior editor) e Alex
Star (ex-editor da book review do Times). Todos desconversam. Até porque
veneram o velho Bob.
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