Márcia Abreu
Até há alguns anos atrás não se imaginava que as formas de ler pudessem ter se alterado desde que o homem inventou maneiras de registrar conteúdos por escrito e formas de decifrá-los. Imaginava-se que a leitura sempre se fizera como supomos que ela hoje se faz, em silêncio e solitariamente, de modo a favorecer a concentração e o recolhimento. Supunha-se que, em todas as épocas, ler implicava pensar sobre textos e interpretá-los, exigindo habilidades superiores à capacidade para decifrar os sinais gráficos da escrita. Acreditava-se que o contato com os livros foi sempre valorizado por favorecer o espírito crítico, tornando o leitor uma pessoa melhor por meio do contato com experiências e idéias registradas por escrito.
Por avaliarmos positivamente essa experiência, pensamos que se devem ler muitos e variados livros. Dentre todas as obras disponíveis, temos especial predileção pela literatura, no interior da qual ocupa espaço importante a ficção em prosa. Sobretudo quando se trata de estudantes, julgamos essencial em sua formação a leitura dos clássicos universais e dos melhores autores nacionais.
Essas idéias, resumidamente apresentadas, correspondem, em linhas gerais, ao que muitos pensam sobre leitura e que alguns tomam como fundamento de sua prática como professores ou como fomentadores de leitura.
Entretanto, nem sempre foi assim. Ao contrário, essas idéias pareceriam disparates completos em outras épocas. A começar pela leitura em silêncio - que hoje nos parece a coisa mais comum. Certa vez, Santo Agostinho visitou Santo Ambrósio - quando os dois viviam em Milão mas nenhum deles era ainda santo - e surpreendeu-se ao encontrá-lo realizando estranha atividade:
"Quando ele lia, seus olhos perscrutavam a página e seu coração buscava o sentido, mas sua voz ficava em silêncio e sua língua era quieta."
Para Santo Agostinho parecia prodigioso que se lesse com a língua quieta, pois ler em voz alta era a norma no século IV d.C., situação que se prolongou até o século XIV, quando muitos nobres ainda dependiam da oralização das palavras para compreensão de um texto.
Mesmo depois dessa época, quando se generalizou a leitura silenciosa, ler em voz alta era uma forma de sociabilidade comum. Lia-se em voz alta nos salões, nas sociedades literárias, em casa, nos serões, nos cafés. Esse tipo de leitura, além de permitir o contato com idéias codificadas em um texto, era forma de entretenimento e de encontro social. Tão importante era a prática da leitura oral que um manual de leitura do século XVIII intitulado Petit Cours de Littérature, à l'usage de la jeunesse de l'un et l'autre sexe, escrito pelo francês Le Texier, definia leitura como:
"A arte de bem ler não é nada além da arte de bem dizer aquilo que está escrito, ou seja, dar às frases que se tem a pronunciar e às palavras que as compõem a verdadeira expressão de que são suscetíveis. Deste ponto de vista, pode-se ver a analogia perfeita que existe entre a Arte de bem ler e aquela de bem falar".
Embora a definição de Le Texier pressuponha a decifração da escritura, enfatiza a destinação oral desta atividade. No século XVIII e início do XIX, o conceito de leitura parece confundir-se com a fala e a audição, podendo prescindir da habilidade de decifração dos sinais gráficos de que se compõe a escrita. Se entre intelectuais o processo de ouvir ler fazia parte das formas de sociabilidade, parecendo coisa comum, qual não seria o poder de divulgação dos escritos entre os não letrados? Por meio da leitura oral, iletrados também poderiam entrar em contato com conteúdos registrados por escrito.
Durante a primeira metade do século XIX a leitura oral era uma das formas de mobilização cultural e política dos meios urbanos e dos operários. Depois disso, numerosas formas de lazer, de sociabilidade e de encontro, antes mantidas pela leitura em voz alta, tornaram-se cada vez mais restritas. A partir daí as elites passaram a restringir os usos da oralização dos textos. Lia-se em voz alta nas Igrejas e nos tribunais. Lia-se em voz alta nas escolas para controlar a qualidade de sua leitura silenciosa - objetivo final da aprendizagem. No passado, a leitura tomava parte em um conjunto de práticas culturais que passavam pelo livro: a escuta dos textos, sua memorização, o reconhecimento, nas letras impressas no papel, do texto repetidas vezes ouvido, sua recitação para si ou para um grupo.
É relativamente recente também a idéia de que o bom leitor é o que lê muitos e variados textos. Durante séculos a quantidade de impressos disponível era pequena, seu preço, elevado, e o livro, muitas vezes, sacralizado - mesmo que não tratasse de tema religioso. O bom leitor era aquele que lia pouco, relia com freqüência e meditava muito sobre os escritos. Ler muito poderia ser visto como um problema - até mesmo para a saúde.
Na segunda metade do século XVIII, o médico suíço Tissot escreveu um livro intitulado A Saúde dos Homens de Letras em que apresentava os perigos que a leitura oferecia para a saúde. Ele explicava que o esforço continuado de intelecção de um texto prejudicaria os olhos, o cérebro, os nervos e o estômago:
"Os inconvenientes dos livros frívolos são de fazer perder tempo e fatigar a vista; mas aqueles que, pela força e ligação das idéias, elevam a alma para fora dela mesma, e a forçam a meditar, usam o espírito e esgotam o corpo; e quanto mais este prazer for vivo e prolongado, mais as conseqüências serão funestas. [...] O cérebro que é, se me permitem a comparação, o teatro da guerra, os nervos que dele retiram sua origem, e o estômago em há muitos nervos bastante sensíveis, são as partes que mais sofrem ordinariamente com o trabalho excessivo do espírito; mas não há quase nenhuma que não se ressinta se a causa continua a agir durante muito tempo."
Todo o organismo parecia sofrer os efeitos da leitura pois ela agiria duplamente sobre ele, forçando continuamente o espírito ao mesmo tempo que mantinha o corpo em repouso durante longos períodos. Diz o autor que, em sua prática clínica, encontrou os mais graves distúrbios de saúde, originados da leitura e escrita. A "intemperança literária" causa perda de apetite, dificuldades digestivas, enfraquecimento geral, espasmos, convulsões, irritabilidade, atordoamento, taquicardia, podendo conduzir à "privação de todos os sentidos". A solução para tantos problemas é ler pouco e fazer exercícios. Nada poderia ser mais estranho, dois séculos atrás, do que nosso desejo atual de tornar a todos leitores e fazê-los ler muitos livros.
Mais bizarro ainda pareceria nosso desejo de fazer com que se leia muita literatura e, máxima temeridade, que estimulemos a leitura de romances. Eles foram vistos, até o século XIX, como um forte perigo para a moral, especialmente a das mulheres e moças.
Supunha-se que a leitura de romances levava ao contato com cenas reprováveis, estimulando a identificação com personagens envolvidos em situações pecaminosas como as mentiras, as paixões ilícitas e os crimes. Acreditava-se, talvez mais do que nós o façamos, no poder da leitura na determinação de comportamentos: um leitor de romances certamente desejaria transportar para sua vida real as situações com que travara contato por meio do texto. Também perigoso era o impulso de imaginar-se no lugar dos personagens envolvidos em situações criminosas: supor-se no lugar de uma adúltera era quase tão grave quando praticar o adultério. Mesmo os que resistissem à tentação de aproximar a matéria lida do mundo vivido seriam prejudicados pois ocupariam tempo precioso com a leitura de material tão pouco elevado, esquecendo-se de suas obrigações cotidianas.
Considerando os efeitos maléficos advindos do contato com romances, chegou-se a propor, na França, a aprovação de leis proibindo a criação e edição de romances nacionais e a circulação de importados. Os europeus não foram os únicos a se preocupar. Um autor mexicano, Manuel Payno, considerava que o contato de mulheres e romances deveria ser controlado. Acreditava que um homem culto poderia ler todo tipo de obra, já as mulheres...
"Há mulheres que sentem tédio só de olhar para um livro - isto é mau - . Há outras que devoram quanta novela cai em suas mãos - isso é pior - . [...] Uma mulher, que lê indistintamente toda classe de escritos, cai forçosamente no crime ou no ridículo. De ambos abismos somente a mão de Deus a pode tirar. [...] Mulher que lê as Ruinas de Volney é temível. A que constantemente tem em sua cesta de costura a Julia de Rousseau e a Heloisa e Abelardo é desgraçada. Entre a leitura das Ruinas de Volney e a de Julia é preferível a de novenas."
Manuel Payno escreve em meados do século XIX e faz eco à tradição colonial de temor em relação aos livros. Nem é necessário lembrar que, durante o período colonial, as metrópoles européias sempre tiveram maior preocupação em proibir leituras e dificultar o acesso aos livros nas Américas do que em estimular a alfabetização e a circulação dos impressos.
Percebe-se, assim, que as formas de leitura e as concepções sobre o ato de ler variaram bastante ao longo dos tempos.
Nossa idéia corrente do que seja ler é, em grande medida, tributária de idéias e imagens construídas no final do século XVIII e ao longo do XIX que foram fortes a ponto de fazer parecer que ler sempre foi aquilo que mostravam. Se as práticas anteriores podem nos parecer estranhas, situações criadas no XIX nos são bastante familiares, especialmente aquelas fixadas em pinturas do época. Nesse período os livros são parte importante na composição de retratos, indicando principalmente o poder social e a posição intelectual dos retratados, que, em geral, são homens. Inúmeras são as obras em que senhores bem vestidos posam diante de uma biblioteca ou estante. Também indicando seu interesse intelectual alguns são vistos lendo jornais, em suas casas ou em espaços públicos.
Já as mulheres são apresentadas no interior de suas casas, sozinhas ou acompanhadas de familiares e amigos. Mais raramente, a leitura ocorre em contato com a natureza em um jardim ou praia. Em geral, estão completamente absortas pelo que lêem, mal dando atenção ao pintor. Se sua leitura foi interrompida elas parecem ainda meditativas, tomadas pelo livro. Um pouco menos freqüentes são as cenas em que grupos de mulheres trabalham enquanto uma lê - para si ou para todas.
Esta leitura coletiva é mais comum quando crianças entram em jogo: as mulheres podem ler para elas ou acompanhar e verificar sua leitura. Crianças lendo sem a supervisão de adultos não aparecem com muita constância mas, quando surgem, o artista compõem um mundo tranqüilo onde pequenos bem comportados estudam ou se divertem.
Os espaços de leitura são também bastante homogêneos: casas confortáveis, bibliotecas luxuosas; sofás e poltronas aconchegantes, mesas repletas de livros e papéis; jardins floridos, algum café. Homens, mulheres e crianças lêem fundamentalmente livros - exceção feita a um ou outro retrato de homem lendo jornal. Mesmo que na maior parte das vezes não se possa reconhecer as obras lidas não há como confundi-las com panfletos ou folhas de anúncios.
Há dois modos fundamentais de contato com o escrito: a leitura de instrução, associada aos livros técnicos e ao universo masculino, e a leitura de entretenimento, vinculada à literatura e ao mundo das mulheres e crianças.
Esta associação entre leitura e enobrecimento do sujeito foi construída historicamente, tendo recebido forte impulso com a ascensão da burguesia. Homens e mulheres bem instalados socialmente parecem ter ficado satisfeitos em associar-se a certos sinais exteriores de sucesso: boas casas, belos vestidos, ambientes confortáveis, e livros.
Passaram-se os séculos, alterou-se o meio, mudou a tecnologia, mas o imaginário em torno ao ato de ler permanece.
Isto se percebe claramente em fotos divulgadas na Internet, sobretudo em sites pessoais. Em pesquisa realizada em duzentas páginas que contêm imagens de leitura, foi possível perceber uma extrema uniformidade nos modos de representação. A julgar por estas fotos, a leitura contemporânea realiza-se em casas, bibliotecas públicas ou escolas. Nestes dois últimos espaços, predominam as mulheres que tomam a leitura como parte de sua atividade profissional: são bibliotecárias sorridentes diante de estantes de livros ou professoras, também sorridentes, em sala de aula. Nas residências, o local preferido parece ser o sofá; nele homens e mulheres instalam-se para ler solitariamente ou abraçam-se enquanto olham para um mesmo livro; nele a família reúne-se para que os adultos leiam para crianças. Quando elas são fotografadas sem a presença de adultos, espalham-se pelo chão, rodeadas de grandes livros cheios de figuras. Embora alguns leiam jornais, a maioria tem um livro entre as mãos. Ler parece ser um ato prazeroso, que se realiza em ambientes confortáveis, tranqüilos e harmônicos.
Pode-se pensar: mas a leitura é assim mesmo! Talvez não seja. É possível que estes modos e objetos de leitura não sejam os únicos ou mesmo os mais freqüentes. Provavelmente aparecem com tanta intensidade apenas porque estas são as práticas socialmente valorizadas. Pessoas que elaboram páginas pessoais na Internet convidam-nos a exercitar nosso voyerismo: querem que penetremos em sua intimidade, querem compartilhar seu cotidiano com milhares de desconhecidos. Acreditam que sua vida privada é tão interessante ou exemplar que vale a pena mostrá-la. E ao construir uma imagem positiva de si recorrem, com freqüência, aos livros e à leitura.
Pensa-se em situações semelhantes a essas quando se discutem as práticas de leitura a serem promovidas no mundo contemporâneo. Como elas não são encontradas com freqüência (ou não são encontradas com a freqüência esperada) difunde-se a idéia de que vivemos uma crise da leitura, de que as pessoas não gostam dos livros, de que é preciso fazer campanhas para incentivar o "hábito" de ler.
Enquanto buscamos uma leitura ideal, não vemos o que temos diante dos olhos.
Pesquisa recente, intitulada Retrato da Leitura no Brasil, mostrou alguns dados surpreendentes. A enquete, realizada entre 10 de dezembro 2000 e 25 de janeiro de 2001, baseou-se em 5.503 entrevistas realizadas com pessoas acima de 14 anos e com 3 anos de escolaridade, residentes em 46 cidades - o que corresponde a um universo estimado de 86 milhões de pessoas.
Ao contrário do que normalmente se dizia, os brasileiros têm uma boa relação com os livros: 89% vêem neles um meio eficaz de transmissão de idéias; 82% acham que é uma importante forma de se atualizar; 81% acreditam que é importante ler para os filhos; 78% gostam de ler livros; 62% leram ou consultaram livros em 2000; 30% leram livros nos três meses que antecederam a pesquisa; 20% compraram ao menos 1 livro em 2000; 14% estavam lendo um livro no dia da entrevista. Embora sejam animadores os dados sobre a relação dos brasileiros com os livros, eles não são o objeto de leitura mais freqüente. Vejamos como os entrevistados responderam à pergunta "você costuma ler":
Cartazes ou folhetos de propaganda......85%
Placas de rua...........................................84%
Letreiros de ônibus..................................78%
Revistas...................................................75%
Jornais......................................................68%
Livros........................................................62%
Se os três primeiros tipos de leitura são muito pragmáticos, é preciso prestar atenção no fato de se preferir (ou de se ter mais acesso) a revistas e jornais do que a livros.
O perfil do leitor mais comum é também inesperado: tem entre 14 e 19 anos de idade (45% do total), tem nível médio de escolaridade (38% passaram pelo colegial enquanto 29 % ficaram entre a 5a e a 8a séries), mora na região Sudeste (49%, seguido de 17% de habitantes da região Sul) e não tem muito dinheiro (34 % pertence à classe C e 31% à classe B ). São os homens os maiores leitores: são 51% de homens contra 49% de mulheres.
E o que eles lêem? Quando perguntados especificamente sobre os gêneros de "leitura habitual", os homens responderam que lêem "livros religiosos" (35% incluindo a Bíblia), histórias em quadrinhos (34%), livros de informática (20%), aventura e poesia (cada qual com 19%). Dentre os gêneros de "leitura habitual", as mulheres também mencionaram os livros religiosos (50% incluindo a Bíblia), mas na seqüência divergiram dos homens pois lêem livros de culinária (33%), quadrinhos (31%), livros infantis (27%), poesia (26%), romance (24%), história de amor (21%) e literatura juvenil (19%).
É interessante observar o que essas pessoas pensam encontrar nos livros. Os homens buscam informação: declararam comprar livros pois desejam "obter conhecimento", "evoluir profissionalmente" e "estar atualizado" (59%). Já as mulheres esperam encontrar ali "momentos de distração e lazer" (23%) e meios "evoluir espiritualmente" (20%) - também pensam que um livro pode ser um bom presente (15%). Como se vê, a imagem construída há séculos de um homem cercado de livros em uma biblioteca e de uma mulher recostada em um sofá com livro na mão ainda fala fortemente ao nosso tempo, especialmente no caso dos homens com seu desejo de ter sucesso profissional por meio da leitura.
Resta saber onde as pessoas conseguem os livros que lêem. A pesquisa, encomendada por empresários do setor livreiro, tinha em mira os compradores de livros, os quais, como mostrou a enquete, são menos numerosos do que os leitores. Apenas metade do acesso aos livros lidos se faz por meio da compra; outras possibilidades são o empréstimo em bibliotecas (8%) e o recebimento de livros dados pela escola (4%).
Quem deseja comprar uma obra, ao contrário do que se supõe, não busca necessariamente uma livraria. Embora 57% dos livros tenham sido comprados em lojas especializadas, foram adquiridos também em bancas de jornal (8%), igrejas (8%), vendedor porta em porta (7%). É interessante perceber que essa distribuição altera-se conforme o nível de renda do comprador. Os mais ricos freqüentam livrarias (73%) enquanto para os estratos mais baixos a venda porta a porta é fator importante para o acesso aos livros. Os mais pobres vão às livrarias em 34% dos casos e, em segundo lugar, recorrem a um vendedor porta em porta (19%) - depois vão a bancas de jornal (11%) e a igrejas (15%). Os dados mostram também que o papel dos vendedores porta a porta é inversamente proporcional ao tamanho da cidade: 16% das pessoas de cidades pequeninas compram livros assim, enquanto apenas 3% das que vivem em metrópoles o fazem. Assim, é preciso avaliar com cuidado a representatividade de listas de best sellers divulgadas em jornais e revistas pois ali se consideram apenas os livros (e não revistas, brochuras etc.) vendidos em livrarias (e não nos outros pontos de venda que se mostraram relevantes para certos segmentos).
Importa enfatizar que a pesquisa mostrou que os brasileiros apreciam os livros e acreditam que eles podem contribuir para fazer sua vida melhor. Demonstrou também que os brasileiros fazem do mercado editorial um bom negócio - proporcionando um faturamento global da faixa de R$ 2 bilhões de reais. Revelou, ainda, que os leitores estão distribuídos pelas diversas classes sociais, inclusive pelas mais baixas.
Embora haja leitores em todas as classes, a distribuição de livros acompanha a distribuição de renda no país: não há maior quantidade de compradores (e talvez de leitores) pois os livros custam caro e as pessoas ganham pouco. A leitura associa-se também à escolarização dos sujeitos. Ou seja, quando mais rica e mais escolarizada for a pessoa mais ela lerá.
Dessa forma, a pesquisa deixou claro que, nos últimos anos, têm sido enfrentados falsos problemas e têm se deixado de lado questões fundamentais. Não parece necessário fazer campanhas para divulgar a idéia de que ler é um prazer, de que ler faz bem para as pessoas - pois elas demonstraram que já acreditam nisso. Mas é preciso criar condições sociais para que o desejo de ler torne-se realidade, enfrentando as violentas desigualdades sociais brasileiras. Só 7% dos pesquisados encontram-se nos estratos mais abastados da população e desta parcela vêm 48% dos compradores de livros. 14% dos leitores afirmou não possuir nenhum livro enquanto 1% possui uma biblioteca com mais de 500 exemplares.
Para fazer deste um país de leitores será necessário possibilitar a toda a população o acesso a escolas de qualidade. Será necessário também distribuir melhor a renda, não só para que mais gente possa comprar livros, mas para que mais gente possa ficar na escola por mais tempo.
O estudo revelou também quais são os obstáculos que as pessoas encontram em sua relação com os livros: 57 % disseram que não compram livros devido ao custo dos impressos e à falta de dinheiro. Como ficou claro acima, não se trata de um problema com a leitura mas de um problema econômico - não compram livros assim como não compram carne ou iogurte. Essa é uma situação injusta e que se torna mais aguda pela precariedade da rede de bibliotecas. Leitores não precisam ser compradores de livros. Deve ser papel do governo, na área específica da leitura, aumentar o número de bibliotecas públicas no país e ampliar seus acervos, muito mais do que envolver-se em campanhas publicitárias de estímulo à leitura.
Mas é preciso pensar nos livros que devem compor o acervo dessas bibliotecas. Os dados da pesquisa forçam uma reflexão sobre a concepção corrente de leitura e de livro. Ficou claro que a literatura não ocupa os primeiros lugares na preferência dos leitores. Homens e mulheres voltam-se para os livros religiosos e para os livros técnicos e profissionais. Se pensamos em uma leitura de lazer, os mais procurados são quadrinhos. Quando as mulheres dizem que gostam de ler poesias, romances e histórias de amor e homens dizem que gostam de poesia e de aventura é bem provável que não estejam pensando nos clássicos da literatura erudita. Basta ver as listas dos best sellers para saber de que romances, histórias de amor e de aventura eles estão falando.
Não parece razoável, portanto, que se continue a pensar apenas nas obras consagradas, nos grandes escritores e pensadores. É preciso conhecer as leituras correntes, aquelas que pessoas comuns realizam em seu cotidiano. E sobre isso pouco sabemos.
A Associação de Leitura do Brasil, da qual faço parte, tem buscado questionar concepções correntes de leitura e chamar a atenção para a diversidade dos objetos e dos modos de ler. Neste sentido, pedimos ao fotógrafo e professor da UFPr, Ângelo José da Silva, que buscasse os leitores anônimos, pessoas comuns com que ele se deparasse pelas ruas. O espaço público mostrou abrigar grandes quantidades de leitores, que se recostavam em árvores de praças, deitavam em gramados de parques, acomodavam-se em bancos de jardins, realizavam malabarismos equilibrando-se em ônibus, apoiavam-se em colunas de metrô.
Um velho sentado em precário banquinho lê um tablóide; a distância do texto em relação aos seus olhos, talvez indique problemas de visão e, mesmo assim, ele mantém-se interessado. Homens lêem em um parque. O mais velho lê um pequeníssimo livro - ou seria uma caderneta de anotações? - quando para o fotógrafo voltou o olhar, sério ou aborrecido com a interrupção. Talvez preocupado com ladrões que poderiam se aproveitar do momento de distração com a leitura, coloca seus pertences - sapatos e casaco - sob seu corpo. O mais jovem parece ser o mais entusiasmado: no rosto um discreto sorriso, os olhos presos no livro de papel barato. Um homem negro, pobre, lê um livreto. Com seus sacos e alguns embrulhos talvez transporte consigo todas as suas propriedades - dentre elas um livro, que lê atentamente.
Essas fotos retratam algumas práticas de leitura comuns - mas que desconhecemos. Uma concepção elitista de cultura as torna invisíveis e faz com que saibamos pouco sobre esses leitores e sobre os objetos de leitura pelos quais se interessam. A delimitação implícita de um certo conjunto de textos e de determinados modos de ler como válidos e o desprezo aos demais nos cega para grande parte das leituras realizadas no cotidiano.
Estes leitores anônimos e involuntariamente retratados são diferente em tudo daqueles fixados em telas do passado anteriormente comentadas. A leitura não parece enobrecê-los; a idéia de conforto não está associada a sua prática; os objetos que tomam para ler não são os da alta cultura. Lêem sozinhos em um ambiente que é de todos. Lêem para passar o tempo ou para descansar. Não parecem orgulhosos de sua posição.
Essas imagens mostram que é necessário ampliar os estudos do livro e da leitura para além do círculo restrito das obras consagradas ou da imagem que nelas se faz de livros e leituras. Nem todos os leitores são gente branca e bem vestida em casas elegantes e confortáveis.